eISSN: 1989-3612
DOI: https://doi.org/10.14201/art2024.31172

FRANS DE WAAL, FILÓSOFO DO DIREITO

Frans de Waal, Legal Philosopher

Fábio PORTELA LOPES DE ALMEIDA*
Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, Distrito Federal, Brasil
fabio.portela@gmail.com

Recibido: 25/01/2023     Revisado: 13/03/2023     Aceptado: 11/08/2023

RESUMO: A alegação de que apenas os humanos são capazes de raciocinar e agir normativamente é profundamente inconsistente com a teoria evolutiva, embora estejam na raiz de muitas premissas assumidas como incontestáveis na teoria jurídica. Recentemente, nos últimos trinta ou quarenta anos, a etologia e a primatologia vêm apresentando evidências de que outros animais também são agentes capazes de cooperar com base em normas sociais. Nesse âmbito, as pesquisas de Frans de Waal ofereceram um pilar fundamental à investigação do comportamento de primatas e outros mamíferos, como elefantes e golfinhos. O presente artigo pretende apresentar como a obra do etólogo pode fornecer subsídios à revisitação de temas clássicos na teoria do direito. No texto, discute-se como Frans de Waal possibilita incorporar na filosofia jurídica a adequada compreensão da cognição moral como lastro à teorização sobre a noção de sujeito de direito e os direitos dos animais, bem como arquitetar um contra-argumento à falácia naturalista como obstáculo a uma visão naturalizada do direito.

Palavras-chave: teoria evolutiva, Frans de Waal, cognição moral, direitos dos animais, falácia naturalista.

ABSTRACT: The claim that only humans are able to reason and act normatively is deeply inconsistent with evolutionary theory, although it is at the root of many premises assumed to be undisputed in legal theory. Recently, in the last thirty or forty years, ethology and primatology have presented evidence that other animals are also agents capable of cooperating based on social norms. In this context, Frans de Waal’s research offered a fundamental pillar for the investigation of the behavior of primates and other mammals, such as elephants and dolphins. This article intends to present how the work of the ethologist can provide subsidies to the revisitation of classical themes in the theory of law. The text discusses how Frans de Waal makes it possible to incorporate into legal philosophy the adequate understanding of moral cognition as a ground to theorize about the notion of legal subject and animal rights, as well as to architect a counterargument to the naturalistic fallacy as an obstacle to a naturalized conception of law.

Keywords: evolutionary theory, Frans de Waal, moral cognition, animal rights, naturalistic fallacy.

1. INTRODUÇÃO

A teoria jurídica assume implicitamente o pressuposto de que o direito é inerentemente limitado ao Homo sapiens a única espécie animal capaz de raciocinar normativamente. Como resultado, a moralidade e o direito só existem em nosso mundo. Esta afirmação não é tão trivial como poderia soar à primeira vista, no entanto, pois assume muitas suposições a respeito da cognição moral. Nossa capacidade de entender normas sociais, aplicá-las e nos rebelarmos contra situações injustas em nosso relacionamento diário com os outros, são assumidas como uma capacidade cognitiva humana obviamente derivada da racionalidade.

No entanto, a alegação de que apenas os humanos são capazes de raciocinar normativamente é profundamente inconsistente com a teoria evolutiva. A partir de uma abordagem darwinista, seria altamente improvável que uma única espécie na natureza exibisse traços psicológicos tão complexos não derivados da estrutura cognitiva presente em seus ancestrais.

A evolução de estruturas complexas é o produto cumulativo de processos incrementais e contínuos, não da ruptura dramática. Como resultado, o surgimento de um traço psicológico tão complexo como a cognição normativa dificilmente poderia evoluir tão abruptamente, nos 200.000 anos de existência de nossa espécie. Uma suposição mais plausível é a de que nossa psicologia social foi gradualmente moldada pela evolução ao longo de milhões de anos e, como resultado, compartilhamos uma enorme proporção de nossa cognição normativa com nossos ancestrais.

Pesquisas recentes têm confirmado essa assertiva, trazendo muitas questões sobre os fundamentos do direito. Tradicionalmente, os estudiosos jurídicos assumem como um dado certas preconcepções sobre a legitimidade do direito e seus fundamentos morais, usualmente fundadas - ainda que nem sempre explicitamente - na natureza racional da espécie humana. Nos manuais, os fundamentos do direito são usualmente apresentados como o mero resultado da história institucional ou de uma deliberação em um suposto “estado de natureza” típico da filosofia contratualista desenvolvida na modernidade. A capacidade de viver em um ambiente social estruturado a partir de normas jurídicas, éticas e morais, é sempre assumida como um pressuposto não problemático e exclusivo de nossa espécie.

Assumir a competência normativa como uma habilidade inexplicada de nossa condição humana, contudo, esconde muitas questões relevantes sobre o próprio papel do direito. Por que as comunidades humanas estão sempre organizadas em torno de certos princípios normativos? A capacidade de cumprir normas e avaliar o descumprimento de padrões normativos surgiu em outros primatas? Se não surgiu, como podemos explicar a singularidade de nossa espécie do ponto de vista evolutivo? Por outro lado, se essa capacidade também está presente em outros primatas, seríamos nós, humanos, tão diferentes deles?

A teoria jurídica tradicional não diz nada sobre esses tópicos fundamentais.

Recentemente, nos últimos trinta ou quarenta anos, desenvolveu-se um enorme conjunto de pesquisas interdisciplinares sobre esses temas. Sabemos mais sobre como a cooperação baseada em normas comportamentais evoluiu na natureza e, particularmente, como ela depende de muitas premissas psicológicas que são apenas timidamente exploradas na teoria jurídica. Ao assumir que somos capazes de ler textos legais, interpretá-los e aplicar normas normativas a situações cotidianas, a teoria jurídica levanta uma enorme questão sobre as origens do direito: como, em primeiro lugar, nós humanos nos tornamos capazes de tarefas cognitivas tão complexas?

Muitos campos interdisciplinares começaram a abordar essas questões nas últimas décadas. Antropólogos, biólogos, economistas, arqueólogos, psicólogos, sociólogos, neurologistas e primatólogos lançaram luz sobre como nossa competência moral emergiu na natureza e no curso de nossa história como espécie na Terra.

Um dos nomes proeminentes neste campo de pesquisa relativamente novo sobre as origens da moralidade e do comportamento normativo é Frans de Waal. Mais do que isso, a contribuição do primatólogo holandês e é primordial para uma compreensão cientificamente informada sobre o direito. Seu trabalho com chimpanzés, gorilas e bonobos mostra que esses primatas exibem um complexo conjunto de comportamentos sociais. Capazes de viver em grupos sociais estáveis onde conflitos emergem diariamente sobre fatores como a hierarquia social, estabelecimento de coalizões, compartilhamento de alimentos e acesso sexual às fêmeas do grupo. Compor tais conflitos demanda uma sofisticada psicologia social, que inclui um senso de justiça, a habilidade de compreende relações de reciprocidade e se envolvem em processos de resolução de conflitos. Ao contrário do que nossos velhos livros de processo civil dizem, os humanos não inventaram os processos de autocomposição de controvérsias.

Em seu livro The Age of Empathy, por exemplo, Frans de Waal afirma que “nossos ancestrais têm sido especialmente bons em entender as emoções dos outros” (Waal, 2010). O primatólogo ressalta que nós humanos temos a “capacidade de ler expressões faciais e linguagem corporal” de uma maneira que nos permita prever o comportamento e as intenções dos outros. Essa faculdade de empatia permitiu que nossos ancestrais sobrevivessem em ambientes hostis onde a compreensão uns com os outros era essencial para a sobrevivência. Em nossos próprios dias, dependemos das mesmas habilidades empáticas para vivermos em paz uns com os outros. Mais do que isso, nossa capacidade cognitiva de entender e aplicar normas legais depende da empatia, uma capacidade fundamental que nos ajuda a nos envolver em interações recíprocas, entender a intenção dos outros e, finalmente, aplicar sanções sociais aos transgressores. E tal capacidade, como demonstra o trabalho do professor holandês, tem raízes em nossa ancestralidade primata.

Este artigo tem como objetivo apresentar parte da pesquisa de Frans de Waal e sua potencial contribuição para a teoria jurídica. Serão abordados, nesse sentido, vários aspectos do comportamento dos primatas (símios e macacos, principalmente) relevantes para a nossa compreensão dos fundamentos do direito e do comportamento social em geral. Impõe-se discutir, também, algumas das implicações desta pesquisa para um teórico do direito: o que significa afirmar que os primatas não-humanos têm um senso de si mesmo? Como eles lidam com conflitos? Como interpretam e aplicam normas sociais? E como eles entendem o conceito de punição? Finalmente, algumas implicações para nossa compreensão do direito e da jurisprudência serão apresentadas, incluindo uma avaliação de percepções de Frans de Waal sobre temas como direitos dos animais, a relação entre o direito natural e o direito positivo, bem como a distinção ser/dever ser que, por décadas, transformou-se em um tabu que impediu os estudiosos jurídicos de explorar esses temas com maior seriedade.

2. HUMANOS, PRIMATAS: CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA DESENVOLVIDA POR FRANS DE WAAL

Frans de Waal dedicou a maior parte de sua carreira acadêmica ao estudo do comportamento social de primatas. Já em sua tese de doutoramento, orientada pelo etólogo Jan van Hoof, demonstrou competência no estudo do comportamento de primatas, sua agressividade e capacidade de formação de alianças, a partir da investigação de macacos de Java (Macaca fascicularis) (Waal, Hoof & Netto, 1976).

Posteriormente, o pesquisador holandês desenvolveu um projeto de pesquisa na colônia de chimpanzés do Zoológico de Arnhem. Contrapondo-se à tese de que outros animais são irracionais, de Waal descreveu o comportamento dos primatas em termos de estratégias sociais cuidadosamente planejadas. A seu ver, somente podemos compreender adequadamente o comportamento social de outros primatas, especialmente no tocante à formação de coalizões, resolução de conflitos ou o compartilhamento de alimentos a partir da suposição de que são dotados de inteligência suficiente para compreender as diferentes estratégias. Esse projeto culminou na publicação de sua primeira grande obra, Chimpanzee Politics (Waal, 1989) e, mais tarde, a suposição teórica de Frans de Waal ganhou tamanha repercussão que passou a ser rotineiramente conhecida na etologia como “inteligência maquiavélica” (Byrne & Whiten, 1988).

Nas décadas seguintes, a pesquisa de Frans de Waal se dedicou ao estudo das emoções e intenções de primatas, o que muitas vezes levou a acusações de antropomorfismo do comportamento animal. De acordo com os críticos, de Waal estaria atribuindo a animais características tipicamente humanas, o que era problemático do ponto de vista metodológico. Afinal, essa abordagem poderia assumir como uma premissa teórica exatamente o que deveria ser demonstrado empiricamente - que o comportamento animal seria explicável a partir das categorias típicas que aplicamos aos humanos (Wright, 2006). Em resposta, de Waal assumiu a própria validade epistemológica do antropomorfismo como estratégia de investigação, salientando que, de outro modo, talvez jamais fosse possível compreender adequadamente o comportamento dos primatas estudados.

Então, a resposta para a pergunta “O antropomorfismo não é perigoso?” é que, sim, é perigoso para aqueles que desejam manter um muro entre humanos e outros animais. Coloca todos os animais, incluindo os humanos, no mesmo plano explicativo. Não é perigoso, porém, para aqueles que trabalham a partir de uma perspectiva evolucionária, desde que tratem as explicações antropomórficas como hipóteses (Burghardt, 1985). O antropomorfismo é uma possibilidade entre muitas, mas deve ser levada a sério, já que aplica intuições sobre nós mesmos a criaturas muito parecidas conosco. É a aplicação do autoconhecimento humano ao comportamento animal. O que poderia estar errado com isso? Aplicamos a intuição humana em matemática e química, então por que deveríamos suprimi-la no estudo do comportamento animal? Mais forte ainda: alguém realmente acredita que o antropomorfismo é evitável (Spada, 1997)? (Waal et al., 2006).

Como resultado de suas pesquisas, o primatólogo passou cada vez mais a denotar como as capacidades cognitivas humanas eram tipicamente encontradas também em outros animais de nossa linhagem primata ou mesmo em outros mamíferos. Não se trata, contudo, do mero compartilhamento pontual de determinadas habilidades. Frans de Waal sustenta que os mamíferos apresentam, em maior ou menor grau, um conjunto de traços que evoluíram progressivamente e sustentam a interdependência emocional entre indivíduos.

Entre essas habilidades, destacam-se o reconhecimento da própria identidade, o contágio emocional, a empatia cognitiva, a identificação da perspectiva do outro e a teoria da mente (Preston & Wall, 2001). Embora nem todos os mamíferos apresentem tais capacidades, habilidades socialmente complexas já foram identificadas em animais como golfinhos e os grandes primatas (orangotangos, chimpanzés, gorilas e bonobos). Tais espécies têm demonstrado habilidades como a formação de coalizões; o altruísmo, inclusive dirigido a indivíduos de outras espécies (Waal, 2010); a aversão a injustiças (Brosnan & Waal, 2003); e a resolução de conflitos com a intervenção de um terceiro (Das, 2000; Waal, 2010). Matriarcas gorilas, por exemplo, intervém para arbitrar conflitos de terceiros com vistas a pacificar o relacionamento, reconciliando os agressores após um confronto. Mesmo baleias são capazes de demonstrar altruísmo extremo, se interpondo entre um navio arpoador e um membro de seu grupo para protegê-lo (Waal, 2010).

Entre as evidências que sustentam a tese, Frans de Waal menciona como os bonobos (e golfinhos) utilizam as relações sexuais para compor conflitos e elefantes têm autoconsciência de si mesmos, inclusive apresentando comportamento de luto após a morte de entes queridos (Plotnik, Waal & Reiss, 2006). Além disso, como ilustra experimento conduzido por Joshua Plotnik e Frans de Waal, juntamente com outros etólogos, os paquidermes são capazes de cooperar ativamente para produzir um resultado desejado (Plotnik et al., 2011).

A pesquisa de Frans de Waal também apresenta contribuições importantes para a compreensão de como opera a cognição normativa entre animais não-humanos. Experimentos elaborados e conduzidos por ele e Sarah Brosnam, por exemplo, identificaram que primatas apresentam comportamentos que seriam ainda mais próximos daquilo que costumamos chamar de justiça. Alguns experimentos projetados pelos etólogos Sarah Brosnan e Frans de Waal demonstram, por exemplo, que chimpanzés têm aversão à desigualdade (Brosnan & Waal, 2003).

Um primeiro experimento foi projetado a fim de verificar se macacos capuchinhos (Cebus apella) são capazes de compartilhar alimentos mesmo sem motivo algum para fazê-lo. Para testar essa hipótese, os pesquisadores posicionaram algumas nozes em um pote, isolado de dois macacos por meio de uma barreira de vidro que contém uma pequena abertura, suficiente apenas para passar um dos braços do macaco. Para abrir o pote, além disso, é preciso utilizar uma pedra, colocada do lado onde estão os macacos. É necessário ter os dois para ter acesso às nozes. A solução, claro, é passar a pedra para o outro lado para que o macaco que está com as nozes possa abrir o pote e pegá-las. Mas isso traz um dilema para o macaco que tem acesso à pedra: por que ele ajudaria o outro macaco? Que garantia ele tem que o macaco não pegará todas as nozes para si, ao invés de compartilhá-las? Apesar disso, ele confia no outro macaco e lhe entrega a pedra; e, em contrapartida, o outro pega as nozes e as divide igualmente com o primeiro. A ênfase, aqui, está no igualmente: ele poderia ter entregado apenas uma noz, ou até nenhuma, mas preferiu dividir igualmente o produto de seus esforços. A conclusão, deste e de outros estudos, é clara: os macacos têm uma mente que valoriza de algum modo a justiça e uma certa divisão igualitária de recursos.

Em sua primeira grande obra, Frans de Waal já sugeria a presença de um senso de justiça entre os chimpanzés em suas interações individuais (Waal, 1989), mas passou a abordar o tema mais consistentemente pouco depois. Em artigo de 1991, de Waal já salientava que chimpanzés possuíam sentido de regularidade em suas relações interpessoais, que o autor reputa como fundante do próprio senso de justiça humano. Tal senso de regularidade, tal como observado nos símios, se revela na observância de normas reforçadas socialmente pela punição de transgressores (Waal, 1991, 343). Mais recentemente, de Waal sustentou que há evidências concretas de que animais se comportam normativamente – definida a normatividade como “aderência a um ideal ou padrão, é ampla a evidência de que animais tratam suas relações sociais desse modo. Em outras palavras, eles perseguem valores sociais” (Waal, 2014, 185).

Nesses termos, a obra de Frans de Waal se afirma como potencial inspiração para a discussão de inúmeros temas da teoria do direito. Na próxima seção, abordarei alguns dos grandes temas da teoria jurídica que podem ser rediscutidos e reformulados a partir da obra do primatólogo holandês, incluindo a teorização sobre as origens do direito, a distinção entre ser/dever ser, os fundamentos da normatividade na psicologia moral e social humana, bem como questões jurídicas mais tradicionais, como a possibilidade de animais serem portadores de direitos e a relação entre o direito natural e o direito positivo.

3. ENTRE ROUSSEAU E KELSEN: CONTRIBUIÇÕES DE FRANS DE WAAL À TEORIA JURÍDICA

Conquanto a teorização sobre as origens do direito já tenha sido influenciada por teorias evolucionárias no final do século XIX e no início do século XX, com os inestimáveis contributos de Henry Maine (1906), John Henry Wigmore e Oliver Wendell Homes Jr (1900), aos poucos tais referências desapareceram das discussões a esse respeito. Com as notáveis exceções de F.A. Hayek (1998) e, mais recentemente, Richard Posner (1980), os livros sobre teoria e filosofia do direito sequer mencionam a existência de uma tradição no pensamento jurídico influenciada por uma abordagem naturalística a respeito das origens do direito.

Hodiernamente, tal discussão é tratada a partir de premissas bastante questionáveis do ponto de vista da antropologia, da etologia, da psicologia, da economia e das demais ciências que investigam as origens da sociabilidade humana. Influenciadas, ainda que implicitamente, por teorias contratualistas iluministas, muitas das obras mais populares afirmam o direito como o produto da racionalidade humana. Segundo essa concepção, o direito teria derivado de convenções ancestrais que, superando o passado animalesco no qual as controvérsias eram solucionadas a partir do uso da força, passou a instituir normas impositivas de resolução dos conflitos, bem como normas de regência do comportamento humano.

Outra discussão clássica, mas que ainda é muito ensinada nas faculdades de direito, se apoia na distinção entre direito natural e direito positivo. A teoria do direito natural decorre de uma tradição antiga na teoria jurídica, que busca justificar o direito a partir de proposições morais universalmente aceitáveis, baseadas na unidade fundamental da racionalidade humana. O direito positivo – direito legislado ou imposto pelas instituições jurídico-políticas - varia em diferentes contextos político-geográficos, mas o direito natural, como expressão da racionalidade, é universal e imutável. Como afirma Daniel Chernilo, a teoria do direito natural baseia-se na crença em “um conjunto universal de leis que são válidas independentemente do lugar, do tempo ou da cultura” (Chernilo, 2013).

A ideia de que a validade do direito é apoiada em normas pré-sociais acompanhou a filosofia jurídica desde a sua criação. Dos filósofos antigos e medievais Aristóteles, Cícero e Aquino aos modernos Hobbes, Pufendorf, Locke, Kant, Rousseau e Vitória, e aos teóricos contemporâneos como Hans Kelsen, Herbert Hart, Alasdair MacIntyre e John Finnis, a maioria dos filósofos do direito escreveu sobre o assunto, seja para abraçar o direito natural ou para argumentar contra sua existência como pressuposto de validade do direito positivo (Contreras, 2013).

A contribuição de Frans de Waal a tais reflexões parece evidente. Sua pesquisa etológica apresenta evidências concretas de que o comportamento social de animais próximos, na ancestralidade evolutiva, ao Homo sapiens, sinaliza a pré-existência de uma psicologia inata repleta de elementos necessários à cognição moral. Tal percepção oferece um caminho único de compreensão de como determinados pressupostos cognitivos foram necessários à evolução de uma espécie como a nossa, capaz de raciocinar a partir de normas morais (e eventualmente jurídicas) e conduzir seu comportamento de acordo com elas.

Esse caminho conduz naturalmente a um importante fundamento para os direitos dos animais, na medida em que demonstra a riqueza da psicologia moral/social de outros animais – alguns nem tão próximos de nós, humanos, na escala evolutiva, como golfinhos e mesmo baleias. Esses animais, além da evidente capacidade de sentir o sofrimento.

Contudo, um obstáculo importante se apresenta a uma abordagem da distinção entre ser/dever ser, tão basilar ao raciocínio jurídico. Se a validade do direito repousa em uma análise apenas normativas sobre os direitos e deveres, como sustentado pelas teorias jusfilosóficas mais aceitas em nosso tempo, o papel da psicologia parece sepultado, uma vez que qualquer derivação de normas a partir de características da psiquê humana aparentemente incorrer na chamada falácia naturalista. Mas Frans de Waal, novamente, oferece contribuição significativa para esse problema, ofertando um caminho lógico de solução que apresenta a conexão entre a ontologia psicológica e a deontologia das normas, sem afrontar o postulado básico da distinção jusfilosófica clássica.

3.1. Da psicologia animal ao direito: descobrindo as raízes cognitivas da normatividade

A teoria jurídica tradicional afirma que o direito é fruto da racionalidade humana (Ferraz Júnior, 2013, 157). De acordo com a leitura proposta, primitivamente os conflitos eram solucionados com base exclusiva na violência e por meio do uso da força. No mundo natural, os animais são incapazes de agir moralmente e resolverem pacificamente conflitos por não serem racionais e não viverem em um mundo cultural constituído por normas morais e jurídicas. Em razão da vida em sociedade e a cultura - continua o argumento -, nos tornamos agentes racionais e capazes de agir conforme normas que regulam nosso comportamento e de respeitar as instituições sociais.

Muitos livros introdutórios ao estudo do direito, por exemplo, afirmam que, antes de as sociedades humanas alcançarem um estágio cultural em que uma instituição como o Estado surgiu, os conflitos sociais eram resolvidos com base na luta entre indivíduos a fim de obter o objeto de seu desejo pela força. Como não havia normas para solucionar conflitos, estes eram decididos com base na violência. Em um manual popular de introdução ao direito processual civil, por exemplo, consta a seguinte passagem: “Nos primórdios da humanidade (...) imperava a lei do mais forte, em que o conflito era resolvido pelos próprios indivíduos” (Alvim, 2001, 10-11). E em outra obra, estudada como clássico, lê-se que “a fim de desfazer o conflito surge uma primeira solução — a violência. É a forma primitiva, e ainda não totalmente extinta, de solução dos conflitos de interesses individuais ou coletivos. É o predomínio da força” (Santos, 2011, 11). Afirmações como essas podem ser lidas e repetidas como verdade absoluta em alguns principais manuais de direito, que ensinam a gerações inteiras de estudantes como, graças à racionalidade, o direito e o Estado trouxeram à humanidade a capacidade de resolver pacificamente seus conflitos.

No entanto, mesmo que grande parte da população jamais tenha lido um único artigo de lei, o direito é cumprido cotidianamente sem que as pessoas recorram ao Poder Judiciário a todo instante para solucionar suas controvérsias. Mesmo sem ter lido uma única linha do Código Penal, a maioria das pessoas conduz seus atos de forma a jamais praticar os crimes moralmente mais graves. O raciocínio moral é intuitivo – e o direito, a religião e a moral efetivamente regulam a conduta humana porque somos, antes mesmo de sermos influenciados por essas instituições - capazes de agir de acordo com normas.

Mas por que somos assim? Uma das contribuições mais fundamentais e evidentes de Frans de Waal à teoria do direito diz respeito justamente à origem da capacidade cognitiva de raciocinar normativamente, tão típica do Homo sapiens. E uma grande lição do primatologista se traduz no reconhecimento de que outros animais também dispõem de uma certa capacidade cognitiva de responder a situações que poderiam ser descritas moralmente. Suas pesquisas sugerem que os chimpanzés adotam comportamentos especificamente voltados para a resolução de conflitos. Depois de um confronto entre dois chimpanzés, por exemplo, não é incomum que o vencedor da disputa se reconcilie com o perdedor, passando algum tempo catando seus parasitas, num processo conhecido como catação (grooming). Trata-se de comportamento bastante custoso em termos biológicos, na medida em que o estado de relaxamento exigido pela catação expõe os chimpanzés a predadores, além de demandar tempo considerável que poderia ser dedicado a outras atividades. De Waal também registra, entre outras condutas, a intervenção de chimpanzés de status hierárquico superior em conflitos do bando, evitando que as disputas internas sejam danosas a longo prazo para o grupo (Waal, 2000, 586-590).

Uma das características mais marcantes identificadas por Frans de Waal diz respeito à capacidade de compreender relações sociais recíprocas, uma premissa na construção cognitiva de um certo senso normativo (de justiça) entre primatas, orientado pela aversão à desigualdade. Trabalhando com macacos capuchinhos (em experimento que mais tarde foi repetido com chimpanzés, com resultados similares), de Waal e Sarah Brosnan elaboraram a seguinte experiência: testando dois macacos por vez, Sarah ofereceu uma ficha a cada um deles, que poderia ser trocada por comida. Nas primeiras experiências, Sarah trocava a pedra por pepinos, e os macacos efetuavam a troca sem qualquer conflito. Mas, quando Sarah tornou a relação de troca sutilmente mais desigual, passando a oferecer uvas para um dos macacos e continuando a oferecer pepinos para o outro – ciente de que a espécie prefere uvas a pepinos - o comportamento do macaco que continuou a receber o pepino mudou drasticamente. Ao invés de permanecer satisfeito com o pepino, o macaco prejudicado sinalizou a injustiça da situação, tornando-se agitado e agressivo e chegando a jogar as pedras, ou mesmo os pepinos, para fora da jaula.

De acordo com a interpretação de Frans de Waal, isso ocorreu como reação à situação de injustiça (Waal, 2010, 187). O fato de o macaco capuchinho reconhecer seu prejuízo comparativo indicaria a capacidade de identificar e reagir à desigualdade, consistindo em um indício das origens evolutivas do senso de justiça (Waal, 2009, 187-189). Pesquisas mais recentes, realizadas com chimpanzés, indicam que esses símios são capazes de reagir à desigualdade de tratamento também em relação a outros indivíduos. Modificando o experimento, Brosnan et al. (2010a) treinaram chimpanzés para trocar pequenos objetos por comida, e testaram como pares de chimpanzés reagiam a vários níveis de recompensa. Como nos experimentos originais, os chimpanzés rejeitavam cenoura quando percebiam que o outro símio era recompensado com uvas. Contudo, distintamente, também era elevada a taxa de rejeição da recompensa quando o próprio indivíduo ganhava uva e o outro chimpanzé, cenouras. Na percepção dos autores do experimento, esse comportamento revela o monitoramento ativo e a reação a diferenças em desfavor de outros (Brosnan et al., 2010b).

A lógica evolutiva da reação à desigualdade nos níveis individual e social é explicada como uma adaptação esperada em animais sociais complexos como os grandes símios e, além disso, é uma das fundações psicológicas de sistemas mais complexos de cooperação social. Nas palavras do cientista:

De onde essas reações vêm? Elas provavelmente evoluíram a serviço da cooperação. A preocupação com o que os outros ganham pode parecer de pouca importância e irracional, mas no longo prazo impede alguém de ser passado para trás. É do interesse de todos desencorajar a exploração e os oportunistas (free-riding), e ter certeza de que os interesses de cada um são levados a sério (Waal, 2010, 187-188).

Pesquisas como essas indicam que, contrariamente ao senso comum teórico repetido em manuais de estudos jurídicos, formas de resolução de conflitos e de identificação e reação a situações sociais injustas a partir de padrões normativos prévios não são uma exclusividade humana. Muito antes de formas sociais de organização centralizadas no poder coercitivo do Estado emergirem, a seleção natural moldou a psicologia de animais sociais de modo a que se tornassem cognitivamente capazes de solucionar suas controvérsias ativamente. Se chimpanzés e outros grandes primatas são próximos do Homo sapiens na escala evolutiva, comportamentos como a punição social de transgressores e a reconciliação entre agressor e ofendido, entre outros investimentos cooperativos, já foram identificados em outras espécies animais socialmente complexas, como golfinhos, morcegos vampiros e elefantes, denotando a lógica evolutiva de estratégias adaptativas convergentes (Carter, 2014).

De acordo com Giuseppe Lorini (2018), tradicionalmente se considera a linguagem como pré-condição da ação nômica e da normatividade; contudo, esta é uma premissa a ser investigada empiricamente. De acordo com ele, as pesquisas mais recentes em etologia vêm mostrando que a resposta é negativa, na medida em que diversos animais apresentam comportamentos que apenas podem ser explicados mediante a suposição de que compreendem e aplicam regras. Assim, em sua perspectiva, a linguagem não é um requisito à normatividade.

Por outro lado, pesquisadores como o jurista italiano Rodolfo Sacco (1995) têm sustentado a existência de normas em outras espécies animais. De acordo com ele, há um certo viés em não reconhecer a normatividade em outras espécies por viverem em sociedades não linguísticas. Mas, quando concebemos o direito na pré-história, em sociedades ainda pré- ou proto-linguísitcas, não é difícil imaginar a presença de regras, inobstante inexista a correspondente descrição linguística. O registro arqueológico, afinal, consigna a presença de ferramentas elaboradas a partir de ossadas ou pedras lascadas, em número suficiente para sugerir que tais instrumentos tinham relevância social – tanto para construí-las quanto para coordenar sua boa utilização em comunidade. Sacco opina, ainda, que muitos atos de natureza normativa eram praticados na ausência de linguagem, a exemplo da marcação de território, de regras de acesso a relacionamentos sexuais, deveres relativos a filhos e parentes, bem como inúmeros outros exemplos relativos ao cumprimento de obrigações recíprocas e observância de tabus. Ainda que não haja normas escritas, e ainda que espontaneamente, os indivíduos relevantes aderem a elas, revelando não apenas a sua existência social, mas também sua própria validade. É inequívoca a existência de normas subjacentes ao comportamento, constituindo uma normatividade pressuposta na psicologia social que se revela em um direito ‘mudo’. Por outro lado, pesquisadores como o jurista italiano Sacco (1995) têm sustentado a existência de normas em outras espécies animais. De acordo com ele, há um certo viés em não reconhecer a normatividade em outras espécies por viverem em sociedades não linguísticas. Mas, quando concebemos o direito na pré-história, em sociedades ainda pré- ou proto-linguísitcas, não é difícil imaginar a presença de regras, inobstante inexista a correspondente descrição linguística. O registro arqueológico, afinal, consigna a presença de ferramentas elaboradas a partir de ossadas ou pedras lascadas, em número suficiente para sugerir que tais instrumentos tinham relevância social – tanto para construí-las quanto para coordenar sua boa utilização em comunidade. Sacco opina, ainda, que muitos atos de natureza normativa eram praticados na ausência de linguagem, a exemplo da marcação de território, de regras de acesso a relacionamentos sexuais, deveres relativos a filhos e parentes, bem como inúmeros outros exemplos relativos ao cumprimento de obrigações recíprocas e observância de tabus. Ainda que não haja normas escritas, e ainda que espontaneamente, os indivíduos relevantes aderem a elas, revelando não apenas a sua existência social, mas também sua própria validade. É inequívoca a existência de normas subjacentes ao comportamento, constituindo uma normatividade pressuposta na psicologia social que se revela em um direito ‘mudo’.

A própria posição de Frans de Waal é clara a esse respeito. É certo que, por décadas, o primatólogo holandês estudou profundamente o comportamento social de chimpanzés, tendo escrito a respeito da existência de normas sociais em sociedades de primatas não-humanos. De acordo com ele, há evidências consistentes de que os animais aderem a normas sociais, observando-as como padrões a serem cumpridos de forma a perseguir concretamente determinados valores sociais. Contudo, a natureza dessas normas ainda é pré-linguísitca; não derivam de racionalidade cognitiva, mas do algoritmo darwinista. Mediante a seleção natural, procedendo ao longo dos milênios, normas sociais como as mencionadas impregnaram a cognição social de diversas espécies animais, determinando, geneticamente, o escopo dos comportamentos sociais esperados. Ainda que os animais possam observar certos padrões de comportamento, isso não significa que eles sejam capazes de racionalizá-los e compreendê-los de forma clara. Têm competências sociais, mas não a capacidade de compreendê-las linguisticamente.

É nesse sentido que venho utilizando o termo ‘mente normativa’ para caracterizar a capacidade cognitiva de compreender conteúdos normativos e se comportar de acordo com expectativas deônticas (Almeida, 2011; 2013; 2020). Tal como Chomsky argumenta em relação à linguagem, processos seletivos insculpiram uma gramática moral universal a partir de critérios evolutivos próprios, que respondem a problemas biológicos que emergem de contextos cooperativos, capacitando indivíduos a operarem de acordo com os postulados da seleção por parentesco e do altruísmo recíproco, bem como, no caso humano, dos instintos sociais tribais (Jordan et al., 2013; Nowak, 2006; Richerson & Boyd, 2008; Silk, 2009; Soltis, Boyd & Richerson, 1995).

A tese de Frans de Waal fornece subsídios concretos a essa tese, revelando não apenas que outros animais têm capacidades como as mencionadas – exceto no que diz respeito aos instintos sociais tribais, típicos do Homo sapiens –, mas também que observam normas sociais específicas que estão entranhadas em sua psicologia. A essas normas venho denominando de ‘direito natural’, em referência à menção, na tradição filosófica clássica, de normas universais e imutáveis que derivariam da própria natureza (o cosmos grego) ou, no contexto moderno, da natureza racional humana. Na presente abordagem, contudo, trata-se de um direito natural naturalizado, cujo conteúdo está impregnado em nossa própria racionalidade normativa. Ao analisarmos situações que evocam a racionalidade moral, nossa cognição já as avalia conforme modelos heurísticos com conteúdo normativo previamente incorporado à nossa psicologia ao longo da evolução de nossa ancestralidade humana.

3.2. Frans de Waal e a questão dos direitos dos animais

A defesa dos direitos dos animais é um ponto bastante polêmico na obra de Frans de Waal. O autor tem sido de extrema relevância para a causa dos direitos dos animais, na medida em que tem contribuído para a evolução do pensamento neste campo para além das considerações usuais na área do direito ambiental. Tradicionalmente, argumentos jurídicos de proteção ao bem-estar animal têm sido fundamentados na função mediata dos animais frente ao próprio bem-estar humano. Contudo, de Waal inovou no argumento, por demonstrar que os animais possuem uma natureza cognitiva complexa e, como tal, seu bem-estar é repleto de nuances que precisam ser compreendidas para prover sua adequada preservação.

No entanto, na obra Primates and Philosophers (Waal et al., 2006), o primatólogo argumenta que as evidências demonstram que os animais possuam consciência e sentem emoções como gratidão e indignação, bem como a capacidade de sentir dor e sofrimento, é desnecessário atribuir a eles direitos. De Waal menciona inclusive o comportamento político dos chimpanzés, que negociam em suas relações sociais a formação de coalizões para elevar sua posição na hierarquia do grupo. Inobstante tais evidências fáticas devam ser consideradas ao se discutir o tratamento destinado a outras espécies – argumenta de Waal –, o Homo sapiens ostenta posição singular que torna criticável a atribuição de direitos a outras espécies.

No livro, de Waal critica ostensivamente a posição do professor Steven M. Wise, de Harvard, para quem os animais não são apenas objeto da propriedade humana, mas merecem os mesmos direitos incontestáveis que os seres humanos. Mencionando como absurda a posição de defensores de direitos dos animais que postulam a concessão de direitos absolutos à integridade corporal e à liberdade, de Waal sustenta que a capacidade de ter direitos exige a assunção de responsabilidades por seu titular. Ser sujeito de direitos, em sua visão, implica a capacidade de compreender seu significado e reivindicar sua proteção. Por esse motivo, inclusive, critica os que comparam o movimento pelos direitos dos animais com a abolição da escravatura como moralmente falha, na medida em que os negros escravizados foram capazes de se tornarem membros plenos da sociedade, enquanto os animais jamais o serão.

Com base nesses fundamentos, e aludindo à circunstância de que a concessão de direitos aos animais depende inteiramente da nossa boa vontade – e não da reivindicação por parte de quem os exerceria –, Frans de Waal propõe que, ao invés de nos concentrarmos nos direitos, deveríamos defender uma ética do cuidado que leve em conta a nova compreensão da vida mental e emocional dos animais. Devemos ensinar as pessoas a respeitar os animais e a estar cientes de seus interesses, com vistas a garantir as condições necessárias para assegurar seu bem-estar.

Em seção destinada a comentários por outros filósofos, Peter Singer apresenta importante contraponto à posição do primatólogo. O professor australiano é conhecido entre os ativistas dos direitos dos animais por sua obra Animal Liberation (2009[1975]) e pela criação, em conjunto com Paola Cavalieri, do The Great Ape Project, iniciativa voltada à preservação dos grandes primatas. De início, Singer reconhece que ambos adotam premissas em comum, porquanto atribuem aos animais a capacidade de sentir dor e emoções bastante significativas, rejeitando eventual interpretação antropomórfica de seu comportamento. Além disso, também perfilham o comprometimento com a prevenção do abuso de animais - afirmando, inclusive, que, “se todos compartilhassem os pontos de vista de Waal, o movimento animal alcançaria rapidamente seu objetivo mais importante” (Waal et al., 2006, 153, tradução livre).

No entanto, Singer entende que a atribuição de direitos aos animais constitui importante pauta de natureza política. Reconhecer direitos básicos a todos os animais pode impulsionar a propositura de projetos de lei visando resguardar seu bem-estar, elevando os padrões de tratamento contra abuso e assegurando adequados padrões de alimentação. Menciona, como exemplo, como a legislação britânica proibitiva da manutenção de porcos em caixas apertadas, elevou a qualidade de vida usufruída por centenas de milhares dos suínos (Waal et al., 2006).

O professor australiano também enfrenta o argumento de que não devemos atribuir direitos aos animais em razão de eles serem incapazes de invocá-los, exercê-los e reivindicá-los. Contra o argumento de que é indevida a analogia entre as penúrias vivenciadas pelos animais e a escravidão porque os escravos tinham a capacidade de se tornar cidadãos plenos e aptos a participar da vida democrática em igualdade de condições, Singer aponta a existência de muitos agentes incapazes de exercer plenamente seus direitos, mas os têm reconhecidos a si. Como exemplo, cita a situação jurídica de bebês e pessoas com deficiência intelectual severa (Waal et al., 2006, 154) Embora incapazes de reivindicar direitos, tais pessoas têm status jurídico de igualdade em relação aos demais cidadãos e, embora não possam votar e exercer determinados direitos, nem por isso são menos protegidas como portadores dos direitos de que são detentores por sua condição humana. Do mesmo modo, determinados direitos poderiam ser assegurados aos animais.

No fim das contas, ambos concordam quanto à maioria das premissas da discussão. A posição do primatólogo quanto aos direitos dos animais não diminui em nada seu trabalho como ativista pela preservação das espécies e pela melhoria significativa do tratamento dirigido aos animais pela indústria farmacêutica e cosmética, fazendas e zoológicos. De acordo com sua perspectiva, contudo, essa é uma obrigação ética que impõe responsabilidade no trato com animais equipados com uma psicologia complexa, que sofrem com os maus tratos e sentem emoções multifacetadas. Não se trata, nessa concepção, de um direito de qualquer animal que possa ser reivindicado juridicamente, mas de uma responsabilidade moral de nós, que somos capazes de compreendê-los como objeto de nossa consideração moral.

3.3. Frans de Waal e a falácia naturalista

A falácia naturalista é uma falácia lógica que decorre da derivação de juízos morais a partir de uma situação de fato que, por si só, não ostenta qualquer status moral. A ideia básica é que, embora seja possível observar fatos e elaborar generalizações a partir deles, não se pode logicamente derivar uma obrigação moral dessas observações. Por exemplo, não se pode concluir logicamente que se deve fazer algo simplesmente porque é o caso de que algo é o caso. Ao incorrer na falácia naturalista, padrões morais são justificados e construídos a partir de premissas factuais. A falácia consistiria em proceder a um salto argumentativo, confundindo os domínios lógicos do descritivo com o do prescritivo. Juízos morais e normativos devem ser justificados com base em outras premissas normativas, não com fundamento em descrições ontológicas. Exemplos comuns da falácia incluem argumentar que algo está errado por não ser natural, ou justificar uma ação por ela estar de acordo com as leis da natureza – como ocorre quando alguém critica o casamento homoafetivo por ser contrário às leis da natureza.

David Hume é considerado como um dos principais precursores da falácia naturalista. Os próprios escritos de Hume sobre o assunto são limitados, mas são altamente esclarecedores em termos de compreensão de seus pensamentos sobre o assunto. Em sua obra seminal, A Treatise of Human Nature, Hume argumenta que os valores morais não são derivados do mundo natural ou da razão humana, mas sim originários de nossos próprios “sentimentos internos de aprovação e desaprovação”. Para Hume, o que é moralmente bom ou ruim é determinado por uma avaliação subjetiva de certos sentimentos ou emoções. Ele argumenta que os princípios morais não surgem de uma racionalidade pura, mas sim das nossas experiências sociais e da nossa natureza humana. Para Hume, os sentimentos morais são aqueles que nos levam a aprovar ou desaprovar determinadas ações. Assim, se a ação é moralmente boa, sentimos aprovação, e se é moralmente má, desaprovação. Hume acredita que os sentimentos morais são inatos e não podem ser explicados pela razão, e que eles são o único fundamento para a moralidade.

Outra contribuição significativa de Hume consiste na distinção lógica entre ser e dever ser (is-ought problem), também conhecida como Lei de Hume ou Guilhotina de Hume. Hume concluiu a famosa seção do tratado que se opunha ao racionalismo moral apontando que outras filosofias morais derivam conclusões normativas, ligadas ao domínio do dever ser (como o direito e a moral), a partir de premissas ontológicas (o domínio do ser) sem observar o salto lógio. Hume argumentou que essa transição é logicamente insustentável. De acordo com a distinção proposta, não podemos confundir os planos do “ser” e do “dever ser”, já que ambos os juízos pertencem a domínios lógicos distintos. Como consequência, é indevido derivar uma prescrição ou uma obrigação moral de uma declaração de fato. De acordo com o próprio Hume:

Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas preposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois, como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. (Hume, 2009, 509 [1739-1740])

O termo ’falácia naturalista’, no entanto, foi proposto pela primeira vez pelo filósofo britânico G.E. Moore em sua obra de 1903 Principia Ethica (Nuccetelli, 2021, 116). Na obra, Moore apresentou três princípios sobre o tema: a) o “bem” expressa o único termo ético que não admite uma análise reducionista; b) nenhum termo ético pode ser reduzido a termos puramente naturalísticos ou metafísicos; e c) nenhuma proposição moral decorre apenas de proposições não-morais (Moore, 1993[1903]). Em síntese, julgamentos morais não podem ser derivados de declarações de fato; explicações não justificam ações.

O projeto de uma ética evolucionista ou naturalista encontra nessas apresentações da falácia um obstáculo importante a suas pretensões. Como discutido na seção 2.1., a obra de Frans de Waal apresenta uma estreita relação entre a moral e a compreensão da evolução humana dentro de um universo de descendência de outras espécies que também apresentavam traços cognitivos necessários à razão prática. A racionalidade normativa humana, nessa visão, depende de ‘blocos de construção’ selecionados progressivamente no curso do processo evolutivo e, em particular, dos últimos 5 milhões de anos, quando a ancestralidade do Homo sapiens lentamente divergiu de outras espécies de primatas.

De acordo com os defensores da ética evolucionista, a teoria da evolução pode esclarecer aspectos sobre a natureza da moralidade, sendo capaz, inclusive, de fornecer justificação para algumas de nossas normas morais. Como sustenta Karla Chediak, contudo, essa concepção ética tem recebido críticas profundas, em parte porque a moral tem sido considerada, por muito tempo, como “a expressão máxima da indeterminação e da independência do homem em relação ao resto da natureza” (Chediak, 2006, 148). Além disso, a filósofa da biologia também denota a própria falácia naturalista como empecilho à ética evolucionista, porquanto uma visão evolutiva da moral poderia justificar comportamentos considerados adaptativos na biologia. Nas palavras da autora:

Se realmente é possível sustentar-se que algumas capacidades motivacionais, comportamentais e cognitivas relacionadas com a moral foram formadas ao longo da evolução da espécie humana, então, pode-se afirmar que elas sustentam, ao menos em parte, os valores humanos e pode-se também apelar a eles para justificar as ações. Transforma-se, assim, o valor adaptativo em termos de sobrevivência e reprodução em valor moral básico (Chediak, 2006, 152).

Os estudos de Frans de Waal apresentam importantes contribuições à ética evolucionista, diante da apresentação de evidências empíricas sobre o comportamento moral de outros animais e, particularmente, dos grandes primatas. Suas observações etológicas expõem como, além de nós, outras espécies são capazes de sentir empatia, se revoltar contra injustiças, negociar coalizões, solucionar conflitos e cooperar ativamente. O próprio Frans de Waal apresenta essas capacidades como ‘blocos de construção’ da moralidade humana, progressivamente empilhados no curso dos últimos milhões de anos pela seleção natural. Contudo, essa concepção não incorreria na falácia naturalista, buscando justificar comportamentos humanos a partir de um juízo de fato sobre como eles evoluíram? Como o primatólogo lidaria com essa objeção significativa?

Frans de Waal enfrenta a objeção em artigo recente (2014). De acordo com ele, “‘ser’ e ‘dever ser’são o yin e o yang da moralidade. Temos os dois, precisamos de ambos, não são os mesmos, mas, apesar disso, não podem ser completamente separados. Ambos se complementam (Waal, 2014, 186). De acordo com sua posição, devemos distinguir as perspectivas conceituais e comportamentais de exame da questão. Do ponto de vista conceitual, é realmente difícil abandonar uma distinção rígida entre os domínios do ‘ser’ e do ‘dever ser’, pois é injustificável derivar obrigações morais a partir de juízos sobre como as coisas ‘são’. Contudo, quando as tendências comportamentais e motivações são postas em jogo, é difícil não reconhecer como a evolução, paulatinamente, imbuiu em certas espécies padrões de comportamento que podemos avaliar como normativos (Waal, 2014, 187).

O etólogo invoca, inclusive, a própria posição de David Hume para sustentar que a consideração de elementos biológico-evolutivos na explicação da moralidade não viola em si mesma a falácia naturalista. Refere, inclusive, o reconhecimento por parte do filósofo escocês de que a moralidade não é fruto apenas da racionalidade, mas também de emoções inatas que moldam nossa própria percepção das experiências sensoriais. A normatividade humana é construída sobre um arcabouço cognitivo evoluído e parcialmente compartilhado com outras espécies. De acordo com o argumento, a biologia, não pertence apenas ao domínio do ‘ser’, mas também investiga questões conectadas ao ‘dever ser’, na medida em que também estuda como diversas espécies de animais são capazes de se comportar com base em padrões normativos que fixam modelos (templates) a serem perseguidos. Tal conclusão pode ser extraída mesmo do comportamento de aranhas e cupins:

Que o comportamento animal não é livre de normatividade (definida como a adesão a um ideal ou padrão) dificilmente precisa de argumento. Tome a reação da aranha a uma teia danificada. Se o dano for extenso, ela abandonará sua teia, mas na maioria das vezes entrará em modo de reparo, trazendo a teia de volta ao seu estado funcional anterior, preenchendo buracos ou repondo fios danificadas (...) Da mesma forma, perturbar um ninho de formigas ou cupins leva a reparos imediatos, assim como danos a uma represa de castor ou a um ninho de pássaros. A natureza está cheia de estruturas físicas construídas por animais guiados por um modelo de como a estrutura deve parecer. Este modelo motiva o reparo ou ajuste assim que a estrutura se desvia do ideal. Em outras palavras, os animais tratam essas estruturas de forma normativa (Waal, 2014, 187, tradução livre).

Frans de Waal reconhece que, inobstante tais comportamentos sejam observados, a questão de fundo atinente à falácia naturalista consiste em definir se outros animais são guiados por emoções similares ao sentimento de obrigação moral de observar certos valores que orienta o comportamento humano. Em sua perspectiva, uma miríade de outras espécies apresentam disposições de autocontrole comportamental a partir do entrelaçamento entre certas emoções e sua cognição. De acordo com Frans de Waal, a própria hierarquia de dominância observada entre os grandes primatas é um sistema de moralidade fundado nessa conexão e que se encontra, inclusive, entre os traços evolutivos que levaram à emergência da normatividade humana. Referindo como os chimpanzés se orientam a partir da hierarquia social, controlando seus impulsos por dominância em respeito à posição do macho alfa, o etólogo destaca como tanto na espécie humana quanto entre os chimpanzés, a mesma região do cérebro (o lobo frontal) é acionada para mediar a resposta comportamental de inibição do comportamento de modo a observar a hierarquia.

Além disso, outros comportamentos observados em chimpanzés também sinalizam a existência de capacidades cognitivas voltadas à cooperação. Como exemplos, menciona as disposições à reconciliação após uma situação de conflito; resolver preventiva de conflitos, com indicação de que a harmonia social é um valor observado no trato entre indivíduos; insurgência contra a desigualdade; e mesmo, embora com menos intensidade, à preocupação com a comunidade. De acordo com o autor, “há muitos exemplos de monitoramento imparcial e mediação que parecem refletir valores comunitários. Em algumas espécies, intervenções dos membros maior ranqueados no grupo encerram brigas ou ao menos reduzem a severidade da agressão” (Waal, 2014, 198, tradução livre). Essas evidências indicariam a prática de ações em benefício da comunidade como um todo, inclusive lastreadas na reputação de cada indivíduo em suas relações sociais (Waal, 2014, 200).

Com esses fundamentos, de Waal sustenta a dificuldade de considerar as observações de biólogos como pertencentes exclusivamente ao domínio do ‘ser’. Explicações sobre o comportamento dos animais sem atribuir intenções, objetivos ou mesmo valores morais são insuficientes por perderem aspectos fundamentais de suas experiências (Waal, 2014, 200). Trata-se de argumento similar ao de Herbert Hart em seu livro clássico, The Concept of Law (Hart, 1994[1961]), onde distingue entre dois pontos de vista teóricos sobre o direito. Do ponto de vista externo, como o adotado por teorias sociológicas, apenas comportamentos são observados, sem referência a qualquer estado mental ou motivo interno dos cidadãos e profissionais de uma comunidade jurídica. O ponto de vista interno, por sua vez, alude à atitude prática de quem respeita as regras, endossando um padrão convergente de comportamento. Assim, o ponto de vista interno refere-se a um tipo específico de atitude normativa mantida por aqueles que aceitam a legitimidade das regras. Examinar o direito apenas do ponto de vista externo implicaria perder uma riqueza de motivações que levam as pessoas a respeitar as normas jurídicas, endossando sua validade.

Assim como Hart, de Waal distingue entre os pontos de vistas interno e externo nas explicações etológicas. Relevar as disposições mentais dos animais – e, particularmente, de animais mais próximos dos humanos na escala evolutiva - na explicação do comportamento altruísta implicaria deixar de lado inúmeras nuances que apenas podem ser afirmadas a partir da premissa de que, como nós, eles são capazes de ter objetivos, valores e sentir emoções.

É preciso destacar que a abordagem de Frans de Waal não apresenta um importante argumento quanto ao obstáculo da falácia naturalista na ética evolucionista. A falácia está em empreender o salto lógico entre a descrição de um determinado estado de coisas e a prescrição de uma ação em particular. A explicação evolucionista da moralidade, contudo, não precisa incorrer nesse erro. É perfeitamente possível descrever como a capacidade cognitiva moral evoluiu sem justificar qualquer comportamento específico.

Uma tal explicação poderia apresentar, inclusive, as razões evolutivas que levam nossa cognição a preferir um curso de ação em detrimento de outros, ou até predisposições que estão na raiz de certos juízos morais. Considere, por exemplo, a alegação de que tendemos a preferir alimentos mais gordurosos em virtude de nosso passado ancestral, onde tais alimentos eram mais escassos e energicamente mais substanciosos. Esta, por si só, é a afirmação de um estado de coisas evolutivos, que não incorpora qualquer prescrição a respeito de nosso comportamento alimentar. A falácia estaria em concluir que, em razão de tal história evolutiva, devemos continuar a consumir alimentos gordurosos atualmente.

Além disso, invocar a história evolutiva é um passo relevante para compreendermos adequadamente como a própria cisão entre ‘ser’ e ‘dever ser’ emergiu na história evolutiva humana. Até a evolução da classe dos mamíferos, possivelmente nenhum outro animal era capaz, cognitivamente, de orientar suas ações com base em um conjunto de regras axiologicamente descritíveis. A escolha dos mamíferos como premissa é justificada com base nas evidências, já mencionadas, de que muitas espécies pertencentes a essa classe apresentam disposições intricadas e necessárias para a cooperação.

A cognição moral - a que venho denominando de ‘mente normativa’ (Almeida, 2011) - pode ter emergido como um conjunto especializado de capacidades intelectuais funcionalmente diferenciadas e dedicadas a avaliar situações socialmente complexas e a decidir pelo curso de ação mais adaptativo. A exemplo de outros domínios intelectivos que se especializaram em nossa história evolutiva, como os voltados à compreensão das relações de causa/efeito no mundo físico, à visão, à audição ou, mais recentemente, à aquisição da linguagem, a cognição moral pode ter emergido como resultado da pressão social da vivência em comunidades sociais progressivamente maiores e mais complexas (Aiello & Dunbar, 1993; Dunbar, 1998).

Em uma perspectiva evolutiva, a cognição moral pode ter se originado de traços intelectivos ligados à compreensão do mundo físico, como os modelos a que alude Frans de Waal ao referir-se ao modo de reparo das teias das aranhas ou de represas de castores. Posteriormente, e progressivamente, se estabeleceu na arquitetura cerebral a distinção funcional entre a cognição do mundo físico e a cognição moral. Com o desenvolvimento histórico da lógica, as operações mentais do primeiro tipo de cognição resultam em juízos de ‘ser’, ao passo que operações relativas à segunda categoria, por sua vez, geram juízos de ‘dever ser’.

Tal explicação não incorre na falácia naturalista, na medida em que apenas explica a cadeia de causalidade que explica a emergência da capacidade humana de formular juízos normativos, sem que daí resulte qualquer justificação de comportamentos específicos. Evidentemente, contudo, ao explicar a emergência da cognição moral com referência ao contexto adaptativo de sua evolução, essa abordagem estabelece um entrelaçamento indelével entre os juízos morais e a estrutura de nossa psicologia. Apenas somos capazes de formular juízos de ‘dever ser’ por termos uma mente normativa, mas a justificativa de tais juízos deve ser debatida em seus próprios termos.

4. CONCLUSÃO

Frans de Waal é referência fundamental para discutir os fundamentos do direito a partir de uma referência naturalista. Suas descobertas nos campos da etologia e, mais especificamente, da primatologia, têm inegavelmente avançado a compreensão sobre o comportamento animal e denotando inúmeros aspectos de similitude com o nosso próprio comportamento.

O reconhecimento de que os membros de outras espécies são capazes de sentir gratidão, empatia e compaixão em relação ao sofrimento de outros, reagir ao tratamento injusto, compor e mediar conflitos, e agir em relações recíprocas, tem o potencial de revolucionar o modo como compreendemos o direito. Tradicionalmente, a teoria jurídica – assim como a maior parte da filosofia moral – se baseia em pressupostos antropocêntricos, que consideram a moralidade e o direito como fruto da racionalidade humana e independente de nossa natureza animal.

O presente artigo objetivou apresentar algumas das contribuições do professor holandês para a teoria jurídica. A dificuldade de enfrentamento do tema, dada a diversidade de públicos a quem a discussão pode interessar, é evidente. De um lado, os juristas não estão acostumados ao enfrentamento da literatura em etologia, primatologia ou antropologia evolutiva, o que explica em parte a profunda desatualização científica dos livros-texto na área jurídica. Essa circunstância é compreensível, diante da especialização em torno de temas relacionados às preocupações mais rotineiras de professores, pesquisadores e profissionais da área. Por outro lado, filósofos e cientistas também desconhecem em grande parte as construções teóricas dos juristas sobre temas que podem ser informados com base na literatura científica. Tal cenário tem levado à ausência de um diálogo interdisciplinar importante, que pode levar à revisitação de temas mais fundamentais da teoria jurídica.

Com vistas a construir pontes entre áreas tão distintas, o artigo buscou expor, em linguagem tão acessível quanto possível a ambos os públicos, alguns dos caminhos teóricos que a obra de Frans de Waal abre para a teoria do direito. Sem qualquer pretensão de esgotar o tema dada a proficuidade de temas investigados por Frans de Waal, a primeira seção destinou-se a expor pontos essenciais das pesquisas do primatólogo, apresentando evidências importantes sobre a vida moral dos animais. Essa exposição, por si só, já denota a contribuição do cientista para a teoria jurídica, na medida em que revela o caráter antropocêntrico das discussões da doutrina tradicional em direito, que usualmente assume, sem qualquer investigação teórica mais profunda, a normatividade como um traço exclusivo dos membros da espécie humana. Como denota a obra de Frans de Waal, trata-se de premissa que demanda um trabalho de justificação e de construção de distinções entre nós e outros animais. Talvez seja necessário, inclusive, categorizar diferenças entre os outros animais, como os grandes primatas, golfinhos e elefantes, entre tantas outras espécies que apresentam nível intelectual elevado e, por isso mesmo, demandam proteção específica de sua singularidade a fim de que possam florescer de modo adequado.

A segunda seção do texto, por sua vez, pretendeu apresentar três pontos de impacto da obra de Frans de Waal à teoria jurídica: as contribuições de suas investigações para a compreensão da cognição moral como fundamento do direito; os direitos dos animais; e a superação da falácia naturalista por teorizações naturalizadas sobre o espectro do direito. Evidentemente, outras contribuições poderiam ser sinalizadas, como a abertura para questionar noções basilares como as de sujeito de direito e de indivíduo, o próprio conceito de normatividade, ou, ainda, a própria concepção de razão prática como atributo exclusivo dos humanos. Contudo, espera-se, como contribuição do artigo, ter-se apresentado, ainda que brevemente, como a obra de Frans de Waal pode ser utilizada como premissa a discussões relevantes à teoria jurídica.

As contribuições de Frans de Waal são relevantes na medida em que indicam a necessidade de maior articulação entre teoria jurídica e estudos sobre comportamento animal. Seu trabalho pode ser considerado um exemplo de como tal articulação pode ser efetivamente concretizada, sobretudo quando se trata de compreender o papel da cognição moral na construção do direito. Desse modo, espera-se que a presente exposição possa servir como ponto de partida para outras reflexões sobre a relação histórica entre direito e comportamento animal, discutindo as contribuições, as limitações e as possíveis aplicações práticas que tais estudos possam oferecer para a compreensão e a aplicação do direito.

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* Doutor e Mestre em Direito (FD/UnB) e Mestre em Filosofia (FIL/UnB). Visiting Researcher em pesquisa doutoral na Harvard Law School (2013/14) e em pesquisa pós-doutoral na Europa-Universität Flensburg (2019). Pesquisador dos Grupos de Pesquisa DISCO (UnB) e GeNe (UFMG). Autor dos livros Constitution: the Darwinian Evolution of a Societal Structure (Nomos, 2020)} e Liberalismo Político, Constitucionalismo e Democracia: a Questão do Ensino Religioso nas Escolas Públicas (Argumentum, 2007).